Os ventos de doutrinas vêm, vão e voltam; somem e reaparecem, aparentemente, do nada. Ressurge fortemente agora uma forma de pensar sobre o uso ou não dos atributos divinos de Cristo durante seu ministério terreno. Para muitos, questão cristalina e resolvida, devaneio é a opção discordante. Isto acontece de forma tão natural que os defensores de tais ideias imaginam que elas são originais. Não se dão conta que tais pensamentos já foram apresentados discutidos, conceituados, rejeitados no todo ou em parte, por uns e por outro não. Neste texto faremos menção da KÊNOSIS (esvaziamento) DE JESUS, O CRISTO (Fp 2.6-11).
Os sofismas (um argumento que parece lógico, mas que não sustenta a conclusão) são estruturas de pensamento que fogem às regras da lógica, contudo em um dado contexto eles parecem a mais pura verdade, todavia continuam sendo um sofisma, por isso conduzindo ao erro. Temos no momento presente, por conta do progressismo humanista tão em voga, um velho sofisma de volta, que pode ser expresso mais ou menos assim: “se Jesus não atuou cem por cento como homem enquanto ele esteve na terra, então Ele nos trapaceou”. Pronto! Racionalidade popular condizente com a época estabelecida, agora, resta a Bíblia concordar, do contrário ela também não é confiável.
Apresentada filosoficamente a primeira questão, como foi no parágrafo anterior, consideremos outra: A razão é uma das quatro fontes de interpretação bíblica, mas jamais a Bíblia poderá ser interpretada com base exclusiva da razão, visto que a Palavra do Senhor, mesmo sendo racional, não se limita a razão, ao contrário transcende-a, e em muito. Lembremos a inda da regra hermenêutica que diz: “a Bíblia interpreta a si mesma”, Bíblia com Bíblia, coisas espirituais com coisas espirituais.
Ainda aguisa de introdução consideremos uma terceira questão: se Jesus usou ou deixou de usar seus poderes divino enquanto esteve neste mundo aqui na forma humana, quais as reais implicações disso? Após esta reflexão adentremos ao texto. Antes, porém, quero dar um aviso para não criar falsas expectativas: não me sinto capaz de resolver todo o dilema por trás do conceito pretendido pela ideia do “esvaziamento”. Se o leitor conhece alguém capaz de explicar o milagre da “encarnação do verbo da vida”, deve dar preferência a esse, contudo, como humildemente acredito que tal pessoa não exista, convido-o a pensar sobre muitas coisas acercas das quais não podemos ter certezas.
Como pode ser visto nas referências, citei o mesmo texto das duas principais fontes originais. Na primeira (ACF) o verbo “kenoo” não recebe tradução direta, mas semântica: “Mas fez a si mesmo de nenhuma reputação”; na segunda tradução direta usando o verbo “esvaziar” da língua portuguesa: “Pelo contrário, ele se esvaziou”. Dessa última ocorrência, aplicando o conceito de esvaziamento nasce a ideia dessa “doutrina” que receberia a designação de Kênosis ou Quênosis.
I O TEXTO NO SEU CONTEXTO
Os melhores comentários do NT costumam dividir a narrativa de filipenses, como de fato deve ser da seguinte forma:
Introdução (1.1-11).
- prefácio, saudações (vv.1,2);
- ações de graças (vv. 3-8);
- oração pelos filipenses (vv. 9-11).
I Parte – notícias e instruções (1.12 – 3.1)
- a situação pessoal de Paulo (1.12-26);
- exortações a comunidade (1.27 – 2.18);
- avisos sobre Timóteo e Epafrodito (2.19-30)
- conclusão da primeira parte (3.1).
Interrompemos aqui nossa divisão da epístola, uma vez que a seção que nos interessa, já foi catalogada: Exortações a Comunidade (1.27 – 2.18). Paulo usa a sua própria condição descrita na seção anterior: preso, humilhado, mas próspero na evangelização da guarda pretoriana, na produção de cartas aos santos e no seu próprio contentamento “Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro.” (1.21), como exemplo de vivência no evangelho e oferece a si mesmo como exemplo para os filipenses que precisariam entender que a vivência no evangelho exigiria igualmente deles, experiencias semelhantes às do apóstolo. Exorta-os: a unidade e firmeza (1.27-30); a humildade e altruísmo (2.1-11); e, nesse momento Paulo sente que seu exemplo pessoal anteriormente mencionado se torna insuficiente e apresenta um mais qualificado, passando a escrever parte da composição de um hino, que ficou conhecido como o hino cristológico (vv.6-11) que fala sobre a humilhação e exaltação de Cristo. Isto mesmo os versículos 6-11 são uma citação de parte desta canção antiga, de onde o apóstolo retira o exemplo por excelência para os filipenses imitarem.
É possível saltar a leitura do versículo 5 para o 12 e conservar o mesmo sentido da mensagem e narrativa, neste caso apenas a citação teria sido removida.
Perguntei a Inteligência Artificial da Microsoft sobre o que trata ou ensina o capítulo 2 de Filipenses e ela respondeu:
Filipenses 2 é um capítulo da Bíblia que incentiva os membros da Igreja a serem unidos, a trabalharem por sua salvação e a imitar o exemplo de Jesus Cristo.
O que ensina Filipenses 2?
- Ser unidos, com um mesmo amor e sendo unidos de alma e mente
- Não jogar sujo, não bajular ninguém só para conseguir o que desejam
- Ponham o interesse próprio de lado e ajudem os outros em sua jornada
- Evitar contendas que enfraquecem a unidade cristã
- Fazer tudo sem murmurações, confiando em Deus
Note, que ela não conseguiu encontrar qualquer relação de propósito com um ensino sobre as naturezas e outras condições de Cristo neste capítulo. Portanto é neste contexto de exortação a conservação da verdadeira fé, de suportar o sofrimento, de pensar no bem-estar do outro e não apenas no seu, de aceitar a condição de humildade como algo próprio do cristão que Paulo menciona essa citação espetacular. E esta citação tem também sua mensagem em particular e vamos explorá-la.
II O HINO CRISTOLÓGICO
Uma das primeiras conclusões a que devemos chegar sobre a leitura desta passagem é a seguinte: ainda que todo o contexto seja denotativo ou literal, esta parte é conotativa, não literal, posto ser um poema com suas figuras de linguagens, organização das frases entorno dos verbos de forma a permitir múltiplos significados interpretativos e até conclusões absolutas do que não está absolutamente escrito, como é normal no texto poético, cito para ajudar nesta compreensão Fernando Pessoa, o poeta português, que em uma meta-poesia, ou seja, poetizando sobre o fazer poético disse:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
(AUTOPSICOGRAFIA)
A nossa citação especial pode ser compreendida dentro da seguinte composição:
1 – Status e atitudes originais “Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus,” (v.6);
2 – Humilhação 1 “Mas fez a si mesmo de nenhuma reputação, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;” (v.7);
3 – Humilhação 2 “E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz.” (v.8);
4 – Exaltação “Por isso, também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu um nome que é sobre todo o nome;” (v.9);
5 – Homenagem 1 “Para que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra,” (v.10);
6 – Homenagem 2 “E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.” (v.11).
“Que, sendo em forma de Deus, [...]” (v.6). Literalmente estando na forma de Deus. Forma (morphê) denota o modo de ser ou aparência a partir dos quais o caráter essencial de algo ou alguém pode ser conhecido. “[...] não teve por usurpação ser igual a Deus,” (v.6). Deste o dia eterno “O Verbo” escolheu não ser igual a Deus.
Sem nenhuma intenção de dizer que o Cristo pré-encarnado não era igual a Deus, o hino o apresenta como alguém apenas semelhante a Deus. Isto já estar no original da primeira sentença (En morphê theou), uma forma semelhante à de Deus. Há um porquê desta construção linguística assim. Tanto na cultura judaica, como na cultura grega o principal sentido de ser semelhante a Deus é a condição bem-aventurada de não morrer, ou seja, ser imune a morte. Todavia o texto vai mostrar, na segunda humilhação, que Cristo humilhou-se até a morte, viveu uma condição do homem mortal diferente de Deus. Muitos conseguem ver um paralelo contrário entre Cristo e Adão, enquanto este foi um homem que não resistiu à tentação de querer ser como Deus, aquele preferiu deixar de ser semelhante a Deus para ser semelhante aos homens, por amor a eles.
“Mas fez a si mesmo de nenhuma reputação, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens;” (v.7). A flexão verbal (kenoun) deixa claro e inequívoco que, seja lá o que Cristo fez consigo mesmo, foi ele quem fez. O verbo em apreço pode ter muitas alternativas de tradução, porém as mais recorrentes são:
a) despojar, que dar a ideia de despir-se, livra-se do que é exterior ainda que importante, renunciar ao seu próprio status. Essa poderia ser uma palavra apropriada para o sentido da tradução ACF;
b) aniquilar, como ocorre em Romanos 4.14, ser tornado impotente, ineficaz, derrotado. Essa não seria uma palavra apropriada ao sentido do texto, por isso a palavra mais utilizada nas diversas traduções das escrituras para esse texto é a terceira opção;
c) esvaziar, significando que Cristo livremente se destituiu do poder, mudando da condição de Senhor para servo (doulos) ou escravo.
“E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz.” (v.8). Depois de esvaziar-se no processo maravilhoso da encarnação do Verbo, agora “reconhecido em figura humana” escolheu o caminho da resoluta obediência ao plano eterno, pelo que humilhou-se “até a morte e morte de cruz!”.
O texto não mencionará a ressurreição, esta fica apenas implícita. O texto vai ressaltar que valeu a pena para Jesus, o Servo de Jeová (Is 53.12) e vale e valerá para quem quiser imitar o exemplo, pois este é o foco do texto. Todavia aquele que começa no texto como apenas semelhante a Deus e se faz semelhante aos homens, reaparece no final como o Senhor de tudo e de todos: “E toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai.” (v.11).
III KÊNOSIS, QUE DOUTRINA É ESTA?
A teologia cristã aplica esta palavra grega que significa “esvaziamento” como um sinônimo ou descrição alternativa para o ato de Deus apresentar-se na terra e aos homens como um deles. Neste artigo esse mesmo ato é sempre mencionado como “o milagre da encarnação do verbo” numa referência direta a descrição de João no início do evangelho que leva seu nome (Jo 1.1-14).
Segundo Leitch (2008):
O termo foi usado pela primeira vez na literatura patrística e foi usado na teologia cristã desde o 1º séc., geralmente como sinônimo de encarnação. Diz respeito a uma ênfase na humilhação ou condescendência de Cristo. O apoio para doutrina baseia-se principalmente em Filipenses 2.6-8, com paralelos que tem a ver com sua humilhação (2Co 8.9) e sua exaltação (Jo 17.5).
Na perspectiva de Champlin (2006): “A teologia aplica o termo ao ato de Cristo, o Filho de Deus, ao torna-se homem, o que significa que ele se esvaziou-se de seus atributos e poderes divinos, embora não da sua natureza divina”.
Até aqui o consenso reina, mas somente até aqui. Champlin continua:
Exatamente até que ponto aconteceu este esvaziamento é ponto disputado, como também como Cristo o fez. Todavia não se pode chegar a uma resposta adequada, porque, ao tocarmos nesta questão, estamos abordando um dos grandes mistérios divinos. Se, por um lado, não dermos a essa doutrina seu respectivo peso, estaremos obscurecendo o ensino sobre a humanidade de Cristo. Se, por outro lado, a enfatizarmos em demasia, estaremos reduzindo Cristo a um mero homem.
O Comentarista do vocábulo kenosis na Enciclopédia da Bíblia (LEITCH, 2008) diz:
Enquanto que a passagem Filipenses apoia a humilhação de Cristo, o problema de interpretação surge daquelas passagens que claramente retratam seus poderes divinos, especialmente as de João (cp. Jo 1.14,48; 5.19-24; 10.30; 11.41; 13.1-3). A questão básica, portanto, é como e até que ponto a total humanidade de Jesus o forçou a “esvaziar-se” do divino, e como e até que ponto seus poderes divinos permaneceram. A questão teológica é profundamente difícil, pois toca apropria natureza da Trindade, e quando os poderes divinos são dados ao homem Jesus Cristo, o que aconteceu com o próprio Deus? Os problemas de interpretação são agravados ainda mais pelo fato de que o uso da palavra equenosis (Rm 4.14; 1Co 1.17; 19.15; 2Co 9.3) uniformemente cabem neste contexto e não carregarão o peso do uso literal que os quenosistas exigem da mesma palavra em Filipenses 2.7.
Consideremos algumas das situações apontadas por João:
a) Em perfeita humanidade e morando com os homens, Jesus Cristo é apontado por ele da seguinte forma: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade.” (1.14). Como foi possível ver essa glória, no Cristo, “esvaziado” de Deus? Que não usou atributos divinos, mas permaneceu em tudo como apenas um homem.
b) No caso de Natanael, “Disse-lhe Natanael: De onde me conheces tu? Jesus respondeu, e disse-lhe: Antes que Filipe te chamasse, te vi eu, estando tu debaixo da figueira. 49 Natanael respondeu, e disse-lhe: Rabi, tu és o Filho de Deus; tu és o Rei de Israel.” Seria mais “interessante” para nós pentecostais que naturalmente damos ênfase ao Espírito Santo, e não há problema nisso, que Jesus tivesse respondido a Natanael assim: “Antes que Filipe te chamasse, te vi eu, por revelação dada pelo Espírito Santo, estando tu debaixo da figueira.” Porém, o destaque em negrito não está escrito, ainda que alguém leia assim.
c) O caso do capítulo 5 de João. Este capítulo começa com o milagre da cura de um enfermo que há 38 anos esperava seu milagre. Jesus vai ao encontro dele e o cura, faz o milagre dizendo “toma o teu leito e anda” (v.8), pois o enfermo não podia andar. E, eis que daí surge um problema: era sábado! Chamaram o homem e disseram hoje é sábado e você não pode carregar o leito (vv.9,10). O homem então questiona quem tem autoridade para dizer o que pode e o que não pode, dizendo: “Aquele que me curou, esse mesmo me disse: toma teu leito e anda” (v.11). desencadeou-se uma busca por descobrir quem tinha dado tão “infame” orientação. Chegaram a Jesus para o reprender e ensiná-lo sobre coisas importantes que ele, aparentemente não sabia, e castigá-lo por conta de sua transgressão. No entanto Jesus discorda da interpretação dada a guarda do sábado e declara: “Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também.” (v.17). A situação piorou, o homem chamado Jesus, que curou o enfermo, transgrediu o sábado, se fez agora, igual a Deus (v.18). Exatamente neste contexto Jesus explica a sua missão dizendo:
Mas Jesus respondeu, e disse-lhes: Na verdade, na verdade vos digo que o Filho por si mesmo não pode fazer coisa alguma, se o não vir fazer o Pai; porque tudo quanto ele faz, o Filho o faz igualmente. 20 Porque o Pai ama o Filho, e mostra-lhe tudo o que faz; e ele lhe mostrará maiores obras do que estas, para que vos maravilheis. 21 Pois, assim como o Pai ressuscita os mortos, e os vivifica, assim também o Filho vivifica aqueles que quer. 22 E também o Pai a ninguém julga, mas deu ao Filho todo o juízo; 23 Para que todos honrem o Filho, como honram o Pai. Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou. 24 Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra, e crê naquele que me enviou, tem a vida eterna, e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida. (Jo 5.19-24, Grifo do autor).
d) “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). Chegamos no ponto fulcral. Senão vejamos:
- O Filho unigênito deixou a glória do céu “Mas fez a si mesmo de nenhuma reputação, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens” (Fp 2.7); “Porque já sabeis a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, por amor de vós se fez pobre; para que pela sua pobreza enriquecêsseis” (2Co 8.9).
- O Cristo anelava por sua glória de volta ou por voltar a ela “E agora glorifica-me tu, ó Pai, junto de ti mesmo, com aquela glória que tinha contigo antes que o mundo existisse” (Jo 17.5).
- Mas em nenhum momento existiu uma separação da Trindade “Eu e o Pai somos um” (Jo 10.30). Se não perdermos de vista, e não podemos perder, que não há três deuses, mas um só (Dt 6.4). Não seremos tentados a pensar que o Pai estava no céu, o Filho estava na terra e o Espírito Santo em um endereço não informado. O messias seria chamado de Emanuel, que significa: “Deus conosco”, pois se o Filho está conosco, está conosco também o Pai e o Espírito Santo, “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9).
IV O ÁPICE DA KÊNOSIS NA DIMENSÃO HUMANA
Voltando a Filipenses (2.6-11) percebemos que a Kênosis é o milagre da encarnação do verbo, começa com a decisão do Filho de abandonar sua condição de Senhor, de semelhante a Deus; para assumir a condição de servo, se tornar semelhante ao homem (vv.6,7). Mas na sequência, como parte ou extensão da Kênosis, temos um estágio de humilhação “E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até a morte, e morte de cruz.” (v.8). O verbo agora já não é mais “kenoun”, com sentido de “esvaziar-se”, mas “tapeinoun”, com sentido de “abaixar-se”, que foi traduzido por humilhou-se. Aquele que já havia se humilhado de forma que não sabemos explicar, passando da condição de divino para humano, se humilharia abaixando-se a condição de servo, e depois, se humilharia em uma obediência, até a morte, e mais ainda a pior de todas as mortes, morte de cruz. Assim, cremos que Cristo voluntariou-se para um plano completo e perfeito, quando decidiu assumir a forma humana e habitar com os pecadores, havia decidido também sofrer a pior de todas as mortes, pois faria sacrifícios de si mesmo por todos os pecadores.
Contudo, assim como não temos condições de explicar como foi possível a encarnação do verbo, também não conseguimos explicar a conclusão da sua obra, posto ser igualmente maravilhosa, obra de Deus e não de homem. Mais algo precisaria ser dito sobre este momento, e foi, um grito: “E às três horas, Jesus clamou em alta voz: — Eloí, Eloí, lemá sabactani? — Isso quer dizer: "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"” (Mc 15.34). Esta foi a expressão antropomórfica, profética, poética e dramática, mais próxima de traduzir as dores e sofrimento da paixão de Cristo, em seu bendito sacrifício pelos pecadores.
Eis-nos outra vez diante de um conflito teológico: literalmente o Pai e o Filho foram separados na cruz?
Quando adolescente e recém-convertido, lendo o evangelho chequei a esta passagem de Marcos 15.34, não entendi e perguntei para os irmãos mais experientes com os quais compartilhava os primeiros passos na fé. Recebi a seguinte resposta: Deus abandonou Jesus na cruz, porque Deus não morre e Jesus precisava morrer pelos nossos pecados. No momento, me dei por satisfeito, parecia coerente, mas depois descobri que havia muito outras perguntas que deveria fazer sobre essa questão.
Vamos as considerações que precisam ser feitas:
1. O Pai e o Filho, bem como o Espírito Santo, nunca se separaram. Jesus falando sobre a ocasião da crucificação explicou
Quando levantardes o Filho do homem, então conhecereis quem eu sou, e que nada faço por mim mesmo; mas estas coisas falo como meu Pai me ensinou. E aquele que me enviou está comigo. O Pai não me tem deixado só, porque eu faço sempre o que lhe agrada. (Jo 8.28,29).
É uma afirmação que significa que ele nunca será separado de Deus, porque a frase se refere a ação contínua. A ideia no grego é que, “aquele que me enviou está comigo e continuará comigo”. Ainda mais, a frase “não me tem deixado só” está no tempo aoristo no grego, indicando que ele não foi deixado só em nenhum momento. Assim, Jesus enfatiza a relação inquebrável entre ele mesmo e o Pai. Nunca no passado foi deixado só, e o Pai vai continuar estando com ele. Observe que todas essas afirmações foram feitas no contexto dos comentários de Jesus sobre sua crucificação. Se a cruz foi o altar do sacrifício, o palco da reconciliação, Deus estava lá, como parte do pacto:
18 Ora, tudo isso provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação,19 a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não levando em conta os pecados dos seres humanos e nos confiando a palavra da reconciliação. [...] 21 Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós, para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus.” (2Co 5.18-19,21).
Interessante que o versículo 21 já foi utilizado para uma tentativa descabida de explicação de porque Deus desamparou Cristo no Calvário, “Deus o fez pecado por nós”. Isolando esta parte do texto afirmava-se categoricamente que Jesus reuniu-se sobre si mesmo os pecados de todos os pecadores e virou uma coisa horrenda. Constrangeu o Pai que não pode contemplar, como dizia o hino: “Silêncio” de 1981, interpretado por Leni Silva:
Nem mesmo Deus
Dos altos céus
Pôde contemplar
Deus meu, Deus meu
Deus meu, Deus meu
Por que me desamparaste?
E esta não é uma ideia nova, há muito ela permeia os arraiais cristãos. Todavia mesmo sendo verdadeiro que, O messias tomou sobre si os nossos pecados, carregou as nossas dores e o castigo que nos traz a paz (Is 53.4-6), “Levando ele mesmo em seu corpo os nossos pecados sobre o madeiro, para que, mortos para os pecados, pudéssemos viver para a justiça; e pelas suas feridas fostes sarados.” (1Pe 2.24). Não se pode literalizar, muito menos estabelecer novas doutrinas sobre a literalização. A mensagem diz que ele, sendo justo, assumiu a nossa culpa, mais continuou sendo justo visto que não pecou; quanto a expressão carregou, levou, é uma referência ao sacrifício pelo pecado e o bode azazel, que recebia os pecados e depois era levado para o deserto levando com ele os pecados expiados (Lv 16). Quanto ao Cristo na cruz, permaneceu tão santo quanto antes dela (Hb 4.15), por isso seu sacrifício foi aceito,
O qual, sendo o resplendor da sua glória, e a expressa imagem da sua pessoa, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, havendo feito por si mesmo a purificação dos nossos pecados, assentou-se à destra da majestade nas alturas; [...] assim também Cristo, tendo-se oferecido uma vez por todas para tirar os pecados de muitos, aparecerá segunda vez, não para tirar pecados, mas para salvar aqueles que esperam por ele.” (Hb 1.3; 9.28).
2. E a queixa do Cristo crucificado? "Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?"” (Mc 15.34) Não seria uma contradição? Não, não é. Lembremo-nos de dois textos proféticos: Isaias 53 e Salmos 22. Através da inspiração do Espírito Santo, Isaias e Davi antecipam e oferecem uma amostra do que seria estes momentos: antes, durante e consequente da crucificação. O Grito de angústia: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” é o verso de abertura de um Salmo de Louvor. É geralmente aceito e reconhecido que essas palavras de Jesus na cruz são uma citação do versículo primeiro do Salmo 22. Há quem acredite que nesse Salmo Davi estava se referindo a um período muito difícil na sua vida, possivelmente quando estava fugindo de Saul. Há, porém, evidências que a composição fosse uma comparação da angústia do rei oprimido pelos inimigos com a corça cercada por cachorros e caçadores que a querem matá-la, nos dois casos: do rei ou da corça, somente Deus para dar o livramento. Contudo independe de existir ou não uma motivação externa ao propósito, é fato que o texto é profético, sobre o que aconteceria com Jesus.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste? Por que te alongas do meu auxílio e das palavras do meu bramido? 2 Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me ouves; de noite, e não tenho sossego.
3 Porém tu és santo, tu que habitas entre os louvores de Israel. 4 Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e tu os livraste. 5 A ti clamaram e escaparam; em ti confiaram, e não foram confundidos.
6 Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do povo. 7 Todos os que me veem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça, dizendo: 8 Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer. 9 Mas tu és o que me tiraste do ventre; fizeste-me confiar, estando aos seios de minha mãe. 10 Sobre ti fui lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe. 11 Não te alongues de mim, pois a angústia está perto, e não há quem ajude.
12 Muitos touros me cercaram; fortes touros de Basã me rodearam. 13 Abriram contra mim suas bocas, como um leão que despedaça e que ruge. 14 Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas. 15 A minha força se secou como um caco, e a língua se me pega ao paladar; e me puseste no pó da morte. 16 Pois me rodearam cães; o ajuntamento de malfeitores me cercou, traspassaram-me as mãos e os pés. 17 Poderia contar todos os meus ossos; eles veem e me contemplam. 18 Repartem entre si as minhas vestes, e lançam sortes sobre a minha roupa.
19 Mas tu, Senhor, não te alongues de mim. Força minha, apressa-te em socorrer-me. 20 Livra a minha alma da espada, e a minha predileta da força do cão. 21 Salva-me da boca do leão; sim, ouviste-me, das pontas dos bois selvagens. 22 Então declararei o teu nome aos meus irmãos; louvar-te-ei no meio da congregação.” (Sl 22.1-22).
Há neste texto muitas similaridades com as coisas que aconteciam com Jesus quando ele foi preso, julgado e crucificado. Como se pode ver:
a) “Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do povo.” (v.6). Uma mensagem semelhante a de Isaias “Era desprezado, e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores, e experimentado nos sofrimentos; e, como um de quem os homens escondiam o rosto, era desprezado, e não fizemos dele caso algum.” (53.3);
b) “Todos os que me veem zombam de mim, estendem os lábios e meneiam a cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer.” (vv.7,8). Compare com Mateus 27.27-31; 42-43:
E logo os soldados do presidente, conduzindo Jesus à audiência, reuniram junto dele toda a coorte. 28 E, despindo-o, o cobriram com uma capa de escarlate; 29 E, tecendo uma coroa de espinhos, puseram-na na sua cabeça, e em sua mão direita uma cana; e, ajoelhando diante dele, o escarneciam, dizendo: Salve, Rei dos judeus. 30 E, cuspindo nele, tiraram-lhe a cana, e batiam-lhe com ela na cabeça. 31 E, depois de o haverem escarnecido, tiraram-lhe a capa, vestiram-lhe as suas vestes e o levaram para ser crucificado. [...] 42 Salvou os outros, e a si mesmo não pode salvar-se. Se é o Rei de Israel, desça agora da cruz, e creremos nele. 43 Confiou em Deus; livre-o agora, se o ama; porque disse: Sou Filho de Deus.
c) “traspassaram-me as mãos e os pés” (v.16). Como fizeram com Cristo;
d) “Repartem entre si as minhas vestes, e lançam sortes sobre a minha roupa.” (v.18). Este versículo é literalmente citado por Mateus:
“E, havendo-o crucificado, repartiram as suas vestes, lançando sortes, para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta: Repartiram entre si as minhas vestes, e sobre a minha túnica lançaram sortes.” (Mt 27.35).
Feitas estas observações é possível apontar pelo menos duas hipóteses de conclusão, não necessariamente excludentes:
1ª - A declaração inicial do SI 22 e a coincidente de Jesus na cruz demonstram íntima relação da expressão da suprema aflição do justo sofredor e a angústia de Jesus na cruz, testemunhando sua plena humanidade, a despeito de sua divindade. Ao assumir a provação extrema de se sentir abandonado por Deus, como o salmista, Cristo penetrou no mais profundo isolamento humano e assumiu nosso sofrimento até o extremo. A indagação desesperada dos que mais sofreram neste mundo é conhecida por aquele no qual a bondade divina se encarnou. E, tal qual, o grito angustiado do salmista se sentindo abandonado, mesmo sabendo que não havia sido, mas impulsionado pela mais candente angústia humana e pela tentação de experimentar logo o milagre da reversão do sofrimento em júbilo de salvação; tal foi o grito de Jesus.
2ª – Consciente do cumprimento profético que acontecia em si e no seu entorno, na presença, inclusive de muitos que conhecia as profecias, principalmente a do salmo, Jesus Cristo, testemunhou a veracidade do evento proclamando o grito de angústia do texto profético.
3 Se Deus não se separou de Cristo, Deus morreu com ele?
A doutrina da união hipostática ensina que Jesus Cristo, como pessoa, possui duas naturezas distintas: divina e humana, sem confusão ou divisão entre elas.
O entendimento cristão dominante é que o eterno Filho de Deus, que possui uma natureza divina, entrou voluntariamente na experiência humana, assumindo uma natureza humana. Como resultado, a pessoa de Jesus Cristo, com ambas as naturezas, divina e humana, suportou o sofrimento físico e a morte na cruz.
A união hipostática é crucial para compreender a natureza da obra de Cristo na cruz. Somente um Salvador totalmente divino poderia suportar o peso dos pecados da humanidade, e somente um Salvador totalmente humano poderia representar a humanidade diante de Deus.
Por isso, Jesus, o Cristo de Deus, construiu a ponte entre Deus e a humanidade. A união hipostática proporcionou a ponte entre o Deus infinito e a humanidade finita, permitindo uma interação significativa, a compreensão e a reconciliação.
Em termos teológicos, diz-se que a natureza divina de Cristo é “impassível”, o que significa que não está sujeito a sofrimento, mudança ou morte. Esse aspecto divino da natureza de Cristo é eterno e imutável. Portanto, enquanto a natureza humana de Cristo experimentou a morte, a Sua natureza divina não foi extinta ou aniquilada.
No entanto, isto não significa que Deus morreu na cruz da mesma forma que um ser humano morre. Enquanto a humanidade de Cristo experimentou sofrimento e morte na cruz, a Sua natureza divina não foi afetada pela morte.
Feitas estas três considerações fundamentais entendemos que o essencial da kênosis enquanto doutrina, já foi levantado. Contudo há ainda algumas variantes kenóticas, mas temo que não devem ser tratadas como doutrinas
IV AS VARIANTES KENÓTICAS
Os kenosistas, como são chamados os defensores de qualquer das variantes kenóticas se subdividem de várias formas. As principais são:
1. Na encarnação, Cristo entregou todos os seus atributos divinos e assim parou com todas as funções cósmicas e consciência divina (Gess, Beecher, et all, apud LEITCH, 2008);
2. Uma distinção é feita entre atributos essenciais e relativos em Deus, e Cristo na sua encarnação não entregou seus atributos essenciais, mas somente seus atributos relativos (Tomasius, Delitzsch, et al, apud LEITCH, 2008);
3. Sua humanidade era tal que ele não exerceu seus poderes divinos de forma alguma (Martensen e Gore, apud LEITCH, 2008);
4. A natureza divina se uniu com sua humanidade gradualmente, e sua deidade completa ficou consumada finalmente na ressurreição. A encarnação foi um processo ao invés de um ato (Dorner, apud LEITCH, 2008);
5. Em sua obediência a seu Pai, Cristo não entregou nem um poder de deidade, mas entregou seu exercício independente;
O problema com todas estas variantes é que elas focam numa suposta entrega de poder e isto não parece encontrar respaldo no texto bíblico (Fp 2.6-11), pelo menos é o que pensam a maioria dos exegetas do mundo inteiro ao longo da história cristã. O que o texto evidencia é uma mudança de posicionamento. Em outras palavras, Cristo não entregou seus poderes, mas entregou sua posição. Ele deixou de agir como o Soberano e passou a agir como servo. “Cristo se despiu não da natureza divina, pois isso era impossível, mas das glórias e prerrogativas de deidade. Isto ele fez tomando a forma de um servo” (Lighfoot, apud LEITCH, 2008). Com isso concorda Louis Berkhof:
O fato de Cristo tomar a forma de servo não envolve a desistência de ser a forma de Deus. Não houve permuta de uma pela outra. Embora preexistindo na forma de Deus, Cristo não considerou o estar em igualdade com Deus como um prêmio que ele não devia deixar escapar, mas esvaziou-se, tomando a forma de servo. Agora, o que envolve a Sua transformação num servo? Um estado de sujeição no qual a pessoa é levada a prestar obediência. E o oposto disto é um estado de soberania em que a pessoa tem direito de comandar. O estar em igualdade com Deus não indica um modo de ser ou de existir, mas um estado que Cristo permutou com outro estado. (BERKHOF, 2012).
Cristo, por amor dos pecadores, trocou a glória no céu pela vergonha da cruz. Isso fez sem perder sua dignidade, pois a verdadeira dignidade consiste em merecer a honra, não necessariamente em recebê-la. Um bom exemplo humano, e claro, por ser humano muito menor, é o de Moisés, conforme relatado em Hebreus 11.24-27:
Pela fé Moisés, sendo já grande, recusou ser chamado filho da filha de Faraó, 25 Escolhendo antes ser maltratado com o povo de Deus, do que por um pouco de tempo ter o gozo do pecado; 26 Tendo por maiores riquezas o vitupério de Cristo do que os tesouros do Egito; porque tinha em vista a recompensa. 27 Pela fé deixou o Egito, não temendo a ira do rei; porque ficou firme, como vendo o invisível.
Isaias diz de Cristo, o servo sofredor que, “Ele verá o fruto do trabalho da sua alma, e ficará satisfeito; com o seu conhecimento o meu servo, o justo, justificará a muitos; porque as iniquidades deles levará sobre si.” (53.11).
Champlin chega a sugerir que o tamanho da nossa legítima convicção na coexistência das naturezas divina e humana em Cristo Jesus é proporcional a nossa dificuldade e limitação para explicar o fato. Ele chega a declarar:
Todas as discursões teológicas sobre a questão terminam em um beco sem saída. [...] Nenhuma explicação adequada sobre esta dificuldade foi jamais oferecida, embora haja evidências cabais para crermos que foi exatamente isso que aconteceu na pessoa de Jesus Cristo. Porém, como tudo sucedeu, e como isso operava, são questões que deixarão os teólogos sempre perplexos. (CHAMPLIN, 2006).
Todavia, mesmo com a nossa dificuldade de explicar o que está além da nossa efêmera racionalidade, devemos defender como verdade teológica válida, aquilo que expressamente está registrado nas Sagradas Escrituras. Por isso devemos evitar declarações do tipo:
a) “Cristo, enquanto aqui na terra, voluntariamente despiu-se, ficou sem seus atributos relativos de divindade (onisciência, onipotência, onipresença), enquanto retendo seus atributos imanentes (santidade, amor, verdade)”.
Tal a firmação carece do mínimo de base bíblica de sustentação representando apenas um apelo racional, supostamente conciliador, mas fere de morte a doutrina das duas naturezas do Salvador. Posto que, em nenhum momento na terra Cristo foi menos que pleno (100%) Deus. Portando possuidor de todos os atributos da deidade. (Jo 1.1-14; 2Co 4.4; Cl 1.15; 2.9; Hb 1.3).
b) Constitui-se em erro, ainda que alguém considere menos grave, o ensino que, “Cristo, mesmo sendo pleno Deus, voluntariamente deixou, aqui na terra, de exercer seus atributos divinos, tudo o que fez foi auxiliado pelo Espírito Santo.
Perfeito o final do argumento. A trindade é una, portanto nem uma pessoa da Trindade faz qualquer coisa sozinha. Para nós tudo começa com a criação do mundo e essa já foi uma obra compartilhada (Gn 1.1; Jo 1.3,10).
No entanto, quando se usa este argumento pensando no ministério terreno de Jesus, comparando com a nossa experiência aí aparecem problemas. Em uma relação entre nós e o Espírito de Deus, temos: nós somos humanos ele é divino, nós somos criatura ele é o Criador, nós somos pecadores e ele é santo..., mas se a relação a ser considerada é a do Espírito de Deus com o Cristo, não estamos falando de dois seres. O Espírito de Deus é o Espírito de Cristo, portanto essa hermenêutica empírica fica comprometida.
Mas a final de contas, Cristo usou ou não os atributos da sua divindade estando na terra? Para mim a resposta é óbvia. Sim, usou. Ele perdoou pecados:
E Jesus, vendo a fé deles, disse ao paralítico: Filho, perdoados estão os teus pecados. 6 E estavam ali assentados alguns dos escribas, que arrazoavam em seus corações, dizendo: 7 Por que diz este assim blasfêmias? Quem pode perdoar pecados, senão só Deus?
8 E Jesus, conhecendo logo em seu espírito que assim arrazoavam entre si, lhes disse: Por que arrazoais sobre estas coisas em vossos corações? 9 Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados; ou dizer-lhe: Levanta-te, e toma o teu leito, e anda? 10 Ora, para que saibais que o Filho do homem tem na terra poder para perdoar pecados (disse ao paralítico), 11 A ti te digo: Levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa. 12 E levantou-se e, tomando logo o leito, saiu em presença de todos, de sorte que todos se admiraram e glorificaram a Deus, dizendo: Nunca tal vimos. (Mc 2.5-12).
E disse a ela: Os teus pecados te são perdoados.
49 E os que estavam à mesa começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa pecados?
50 E disse à mulher: A tua fé te salvou; vai-te em paz. (Lc 7.48-50).
O princípio encontrado em toda a Bíblia é que o perdão é assunto de Deus. "Mas o perdão está contigo, para que sejas temido" (Sl 130.4); "Porque tu, Senhor, és bom, pronto a perdoar e cheio de amor para com todos os que te invocam" (Sl 86.5); "Ao Senhor, nosso Deus, pertencem a misericórdia e o perdão" (Dn 9.9). Quando Jesus demonstrou seu poder de perdoar pecados, Ele mostrou claramente que era o Filho de Deus exercendo a autoridade de Deus neste mundo. "Quem pode perdoar pecados, a não ser Deus?" (Lc 5.21). Ninguém. Jesus é o Deus encarnado.
Contudo, é fato, que a natureza humana de Jesus, intrinsicamente ligada a um corpo físico, impunha limitações temporárias a ele, sem com isso anular a sua natureza divina. O mesmo texto de Marcos 2 começa dizendo que Jesus estava dentro de uma casa superlotada e os amigos do paralítico tiveram que abrir parte da cobertura da casa para introduzi-lo a presença de Jesus.
c) Que Cristo usou estes ou aqueles atributos e outros não, estabelecendo categorias de atributos ou virtudes divinas usadas e não usadas. Alguns desses atributos não usados seriam: Onipresença (Jo 11.14-15); Onisciência (Mc 13.32; Lc 8.45-46); e, Onipotência (Lc 5.19-20). Os defensores desta teoria alegam:
Jesus não era onipresente ou, simplesmente, não usou este atributo, não pode estar em Betânia quando da morte de Lázaro: “Então pois, Jesus disse-lhes claramente: Lázaro está morto; E folgo, por amor de vós, de que eu lá não estivesse, para que acrediteis; mas vamos ter com ele.” (Jo 11.14-15);
Jesus não era onipotente ou, simplesmente, não usou este atributo, (Lc 5.19-20), honestamente não consigo identificar motivo algum para este texto bíblico ser relacionado diretamente com a não onipotência, ainda que encontre problemas relacionado a onipresença, todavia se alguém consegue ver Jesus esvaziado de onipresença e onisciência, por tabela também o verá esvaziado de onipotência;
Jesus não era onisciente ou, simplesmente não usou este atributo, pois não sabia o dia e a hora dos cumprimentos proféticos: “Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai.” (Mc 13.32); Jesus não conseguiu sequer identificar quem lhe havia tocado na multidão: “E disse Jesus: Quem é que me tocou? E, negando todos, disse Pedro e os que estavam com ele: Mestre, as multidões te apertam e pressionam, e dizes: Quem é que me tocou? 46 E disse Jesus: Alguém me tocou, porque bem conheci que de mim saiu poder.” (Lc 8.45-46).
Vamos a reflexão do porquê não se deve crer assim.
Para compreender melhor o assunto, seria bom lembrar algumas coisas sobre os atributos divinos, bem como, distinguir entre a natureza de Deus e Seus atributos. A natureza de Deus constitui o Ser, isto é, o que Deus é em si mesmo; os atributos revelam o Ser. Deve-se ainda notar que os atributos não são Deus, mas são os modos e as qualidades Dele. Várias classificações têm sido apresentadas: uns falam em atributos naturais e morais; um segundo grupo prefere falar em atributos absolutos e relativos. A classificação mais comum, todavia, é falar em atributos incomunicáveis ou imanentes, e comunicáveis ou emanentes. Atributos incomunicáveis são privativos de Deus, e não podem ser encontrados no ser humano: onipotência, onipresença, onisciência e imutabilidade. Por outro lado, atributos comunicáveis são aqueles que a Divindade transfere ao ser humano, tais como: bondade, amor, justiça, paciência, longanimidade, misericórdia e outros.
Assim sendo, Cristo é Deus, pois o Novo Testamento assim o denomina sete vezes (Jo 1.1; 20.28; Rm 9.5; Tt 2.13; Hb 1.8; 2Pe 1.1; Jo 5.20). Se é Deus, é perfeito, logo não pode ganhar nem perder nada. “É bastante eliminar um dos atributos de Deus para que Ele deixe de ser Deus.” (PORTO Apud Borges, 2025). Portanto, Ensinar que Cristo perdeu a onipresença é mais uma das artimanhas do inimigo para diminuir o Salvador de Seu todo-suficiente sacrifício em nosso favor. Declarar que Ele perdeu a onipresença seria negar Sua divindade, uma das mais sérias heresias que a Igreja Cristã enfrentou através dos séculos, e enfrenta em nossos dias.
Resta-nos, portanto, o dilema: quanto e como o Cristo usou seus atributos divinos entre seu nascimento e ressurreição?
É racional aceitar que vestido de humanidade, Cristo não poderia estar em toda parte em pessoa. Todavia, limito-me a dizer que ele não o fez, deixando registro disso nos evangelhos. E quanto aos textos bíblicos em apreço, lembremo-nos: da não literalização e do antropomorfismo. Jesus estava lidando com os homens e por eles precisava ser compreendido, destarte, Jesus se comportava e falava como um homem (na forma de homem). Senão vejamos:
Jo 11.14-15 – conquanto alguém use este texto para demonstrar a limitação de Jesus de estar em dois lugares corporalmente, antes da ressurreição. Consideremos o que não pode ser negligenciado no capítulo: (v.1) Estava enfermo um certo Lázaro, de Betânia; (vv.2,3) suas irmãs mandam dizer: Senhor, eis que está enfermo aquele que tu amas; (v.4) “E Jesus, ouvindo isto, disse: Esta enfermidade não é para morte, mas para glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado por ela”. Jesus apresenta conhecimento prévio do fato e do propósito; (vv. 5-10) Apesar de amar Marta, Maria e Lázaro, o doente, ficou ainda dois dias no lugar onde estava, depois foi para a Judeia, onde já havia passado. Claramente esperando Lázaro morrer, um plano estava em ação. Qual de nós faríamos isso, ainda que orientado pelo Espírito? (vv.11-14) “e depois disso disse-lhes: Lázaro, o nosso amigo, dorme, mas vou despertá-lo do sono”. Os discípulos foram levados a pensar, se repousa passa bem. “Então pois, Jesus disse-lhes claramente: Lázaro está morto”; (v.15) “E folgo, por amor de vós, de que eu lá não estivesse, para que acrediteis; mas vamos ter com ele”. Este é o versículo-chave. A ausência premeditada, deixar as irmãs sozinhas com a dor do luto, parentes amigos e conhecidos envolvidos no sepultamento, tudo isso não fala de uma ausência por não poder ou por não quer, mas de algo muito maior “para glória de Deus, para que o Filho de Deus seja glorificado” como já havia dito. (v.16) mostra que os próprios discípulos viam a morte como um obstáculo intransponível; (v.17) informa que Jesus chegou em Betânia quatro dias depois do sepultamento; (vv.18-24) trazem algumas informações assessorias que terminam com a declaração de marta sobre sua crença em uma ressurreição escatológica; (vv.25-27) encontramos aqui um novo texto emblemático, Jesus se declara dizendo: “Eu sou a ressurreição e a vida; quem crê em mim, ainda que esteja morto, viverá; E todo aquele que vive, e crê em mim, nunca irá morrer”. E a irmã de Lázaro manifesta sua fé dizendo “Sim, Senhor, creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo” Como encontrar nestes versículos apenas a natureza humana de Jesus em ação? (vv.28-38). Esta seção apresenta um retrato do existencial humano: busca por comportamentos adequado, circunstâncias perdidas “se tu estivesses aqui, meu irmão não teria morrido”, comoção por empatia que envolve o Cristo com sua natureza humana, conclusões com base em manifestação de sentimento e julgamentos típicos: “Não podia ele, que abriu os olhos ao cego, fazer também com que este não morresse?”; (vv.39-44) diante do sepulcro que, “era uma caverna, e tinha uma pedra posta sobre ela” Jesus ordena: “Tirai a pedra”. Marta, explica a inconveniência, mas recebe uma exortação a fé “Não te tenho dito que, se creres, verás a glória de Deus?”, “Tiraram, pois, a pedra de onde o defunto jazia. E Jesus, levantando os olhos para cima, disse: Pai, graças te dou, por me haveres ouvido” Uma gratidão antecipada e pública é feita por Jesus ao Pai. Depois ele declara que a gratidão pública não era por ter sido atendido diante da possibilidade de não ser, mas apenas por causas dos expectadores que deveriam ser levados a fé: “Eu bem sei que sempre me ouves, mas eu disse isto por causa da multidão que está em redor, para que creiam que tu me enviaste.” Este é um grande segredo muito do que é dito ou feito por Jesus segue um princípio didático dentro de um simbolismo antropomórfico; Finalmente, “clamou com grande voz: Lázaro, sai para fora. E o que fora defunto saiu, tendo as mãos e os pés ligados com faixas, e o seu rosto envolto num lenço”. Jesus ainda diz: “Desligai-o, e deixai-o ir”. Você aceita ainda que todo este texto (vv.1-44) ou mesmo todo o capítulo permite uma interpretação isolada apenas dos versículos 14,15.
Mc 13.32) e Lc 8.45-46 – Estas duas referências são frequentemente reclamadas por aqueles que defendem que Jesus estava esvaziado do atributo da onisciência ou não fazia uso dela.
Comecemos por Lucas, quando Jesus pergunta “quem me tocou” não o fez porque não soubesse, porém para preparar um ato comunicativo perfeito na esfera humana. Assim como Jeová perguntando a Adão “onde estás?” (Gn 3.9), “Quem te mostrou que estava nu?” (Gn 3.11). Não faltava nenhum conhecimento para Deus, mas um diálogo, tocante, esclarecedor, uma lição precisava ser comunicada em linguagem humana e Deus se faz semelhante a Adão no ato comunicativo.
Quanto a Marcos, a coisa parece ser mais difícil, todavia, só parece. O princípio é o mesmo. Jesus está falando como um homem para outros homens e dizendo-lhes que há coisas reservadas exclusivamente a Deus, e que acercas destas coisas cabe ao homem apenas a espera vigilante (v.33). O anúncio é feito por meio de uma figura de linguagem chamada gradação: “nem os anjos que estão no céu, nem o Filho, senão o Pai”. Nos versículos sequentes há uma ilustração para essa mensagem e a verdade ilustrada é: o Senhor não quer que você saiba se ele vem “à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo, se pela manhã,” Ele quer que você esteja de prontidão.
Cristo como o homem perfeito, representante igualmente perfeito da humanidade e pelo prisma da sua natureza humana, poderia até dizer, sem faltar com a verdade, que não era onisciente, não sabia “do dia e da hora”. Mas, na realidade, sua pessoa integral sempre foi e é e será onisciente, Cristo sempre soube qual será aquele dia e hora, pois sua intrínseca natureza divina é onisciente. Todavia, Cristo não mentiu, nem negou sua natureza divina, ao contrário praticou um ato comunicativo perfeito: Há coisas reservadas exclusivamente ao conhecimento de Deus, sobre as quais é inútil a especulação humana.
V CONCLUSÃO
“Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre. Não se deixem levar por doutrinas diferentes e estranhas, porque o que vale é ter o coração confirmado com graça e não com alimentos, que nunca trouxeram proveito aos que se preocupam com isso. (Hb 13.8,9).
REFERÊNCIAS
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BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. 4ª ed. São Paulo: Cultura Cristã, 2012.
BORGES, Michelson, Cristo perdeu Sua onipresença ao encarnar? Disponível em: https://michelsonborges.wordpress.com/2022/11/20/cristo-perdeu-sua-onipresenca-ao-encarnar/ Consultado em 08/03/2025.
BROWN, Raymond E.; FITZMAYER, Joseph A.; MURPHY, Roland E. Novo cometário bíblico São Jerônimo: Novo testamento e artigos sistemáticos. São Paulo: Academia Cristã e Paulus, 2015.
CHAMPLIN, Russell Norman. Kenosis. In: Enciclopédia de Bíblia, teologia e filosofia. 8ª Ed, São Paulo: Hagnos, 2006. v. 3, p. 698.
CONCISO DICIONÁRIO BÍBLICO – 17ª ed. Rio de Janeiro: Impressa Bíblica Brasileira, 1990.
LEITCH, A. H. Kenosis ou quenosis. In: Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2008. v. 3, p. 835-836.
PESSOA, Fernando. Autopsicografia. Disponivel em: http://multipessoa.net/labirinto/fernando-pessoa/1. Acesso em 22/02/2025.
Excelente.